Na missa celebrada por dom Antônio Carlos em Barra de Santana, a esperança dos mais de 800 moradores dividiu espaço com a certeza de que este deverá ser o último Natal na comunidade, porque em 2022 as festividades serão celebradas em um outro local, com moderna infraestrutura urbana – escola, creche, posto de saúde, área de lazer, água encanada e esgotamento sanitário – chamada Nova Barra de Santana, a 25 quilômetros de Jucurutu.
A transferência será feita no primeiro trimestre de 2022, conforme o plano de remoção das famílias que vivem na área inundável da Barragem Oiticica, encerrando oito anos de expectativas e incertezas. “Em anos anteriores a gente sempre ouvia dizer: este será o último Natal na comunidade e não era. Mas este ano está diferente, parecendo que vai mesmo ser o último”, comentou a moradora Reinailza Carla Pereira de Medeiros, antes de ler o poema “No Dia que Eu for Embora”, exaltando as boas memórias do local.
“A barragem representa a redenção hídrica do Seridó. Ela é fundamental para garantir o abastecimento de Caicó, de Currais Novos, de dezenas de outras cidades da região, além de trazer benefícios sociais e econômicos para mais de meio milhão de pessoas. É uma luta de décadas da qual me orgulho de ter participado como parlamentar e, agora, como governadora”, disse a professora Fátima Bezerra, destacando o papel da Igreja e dos movimentos sociais e a parceria da bancada potiguar – destinando recursos de emendas parlamentares -, para a consolidação do projeto.
Os comerciantes Lúcia e Sales estão na lista dos 880. Ele é dono de um bar; ela de uma loja de confecções. O microempreendedor Janúncio Medeiros também. Janúncio tem uma padaria que processa meia tonelada de farinha de trigo por dia. Faz pão, bolacha e biscoito e tem um ponto de venda de seus produtos em Barra de Santana. Quase todos os comerciantes já receberam indenização dos imóveis que vão ficar submersos quando a barragem encher, e agora aguardam autorização para construir os pontos comerciais no local onde passarão a morar.
Nova Barra de Santana terá 177 residências permutadas e 41 de inquilinos, totalizando 218 moradias. Os proprietários de imóveis rurais situados na bacia hidrográfica (área inundável) serão transferidos para as quatro agrovilas do projeto Oiticica. A primeira dela, a Jucurutu, está em fase final de construção. São 14 lotes destinados a famílias de Carnaúba Torta.
No final de setembro, o Movimento dos Atingidos e Atingidas pela Construção da Barragem de Oiticica fez uma sondagem, junto aos moradores. Mais de 90% querem ser transferidos para o novo lugar o quanto antes. “A Nova Barra de Santana está bonita, bem planejada. Tem casas, escola, creche, posto de saúde, equipamentos comunitários novos, ruas calçadas, saneamento básico. Eles querem estar lá até maio de 2022”, explica Procópio Lucena, um dos líderes do movimento.
A transferência ainda depende de questões de ordem jurídica, intervenções em obras físicas, ligação de água tratada e fornecimento de energia elétrica. Para garantir o abastecimento de Nova Barra e de outras comunidades rurais no entorno da barragem, o trecho da parede que funciona provisoriamente como sangradouro foi elevado em mais quatro metros, após negociações com os movimentos sociais. Isso permitirá que a capacidade atual passe de 5 milhões para 12 milhões de metros cúbicos. O reservatório será usado como ponto de captação para alimentar as adutoras do Projeto Seridó que vão levar água para as cidades e comunidades rurais da região.
“A Barragem de Oiticica está tomando forma em todos os aspectos, tanto físico quanto social. Precisamos enfatizar o esforço que tem sido feito pela governadora Fátima Bezerra desde o início de sua administração”, afirmou o secretário estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Semarh), João Maria Cavalcanti, que representou a governadora Fátima Bezerra na celebração religiosa em Barra de Santana. “O compromisso do Governo do Estado é que só feche totalmente a parede quando não houver nenhuma família em sua bacia hidráulica”, assegura João Maria. “Tudo aqui foi feito com muita negociação, debate, discussões e até sofrimento”, complementa Procópio Lucena.
Sonhos antigos
O projeto Oiticica é tão antigo quando o da Barragem Armando Ribeiro, construída 100 quilômetros adiante no mesmo leito do Rio Piranhas e inaugurada em 1983. Oiticica surgiu na década de 1950, ficou em engavetado por 40 anos até ser resgatado em 1990, quando houve a primeira tentativa de montagem do canteiro de obras pela empresa vencedora da licitação, a Odebrecht. Mas problemas técnicos e ambientais colocaram o projeto novamente em compasso de espera.
Em 2008, quando as águas da sangria da Armando Ribeiro inundaram cidades do Vale do Açu deixando milhares de pessoas desalojadas, danificaram estradas, destruíram plantações de banana, viveiros de camarão e arrasaram áreas inteiras de produção de sal, ficou claro que o projeto não mais podia ser ignorado.
Uma articulação política da bancada potiguar no Congresso Nacional, em 2010, conseguiu incluí-la no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e em abril de 2013 a responsabilidade pela construção foi delegada ao governo do Estado. A ordem de serviço foi assinada pela então presidente Dilma Rousseff em 03 de junho de 2013 e a obra iniciada 23 dias depois, com prazo de conclusão previsto para 31 de dezembro de 2019.
No final de fevereiro de 2016, quando os bispos do Regional Nordeste II, da CNBB, organizaram uma caravana para fazer o percurso inverso da transposição – da Barragem Armando Ribeiro até o ponto de captação da água no rio São Francisco, em Cabrobó/PE – Oiticica era a obra mais atrasada da transposição. Quando a professora Fátima Bezerra assumiu o comando do governo do RN, em 1° de janeiro de 2019, apenas 43% tinham sido executados.
Com 590 milhões de metros cúbicos de capacidade, Oiticica será o terceiro maior reservatório do Rio Grande do Norte – atrás apenas da Armando Ribeiro e da Santa Cruz em Apodi. Terá água suficiente para abastecer todo o Seridó, irrigar até 10 mil hectares e gerar 3,5 megawatts de energia elétrica.
Idealizado no início do Século 20, quando as secas começaram a atingir com maior intensidade a população e a economia essencialmente rural do Seminário nordestino, o projeto da transposição foi resgatado no governo Itamar Franco (1992-1994) e iniciado em 2007, apesar da resistência dos “estados doadores”, dos “coronéis do Nordeste e até de movimentos sociais, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
“Esse é um dos sonhos mais antigos acalentados pelos nordestinos. Pra mim, tem um significado especial. Conheço a seca e não é pelos livros. Minha geração sofreu muito as agruras da seca, as consequências impiedosas provocadas pela falta de chuvas. O acesso à água em quantidade e qualidade é um direito de todos. A água deve também ser vista como vetor de desenvolvimento”, disse a governadora Fátima Bezerra ao destacar que essa é a proposta do Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional (PISF).
“Sonho que a gente desiste vira pesadelo. É preciso apostar, perseverar e acreditar porque recomeçar, muitas vezes, é mais difícil do que começar”, disse D. Antônio Carlos, bispo diocesano de Caicó, na homilia. Ele propôs que as 12 pessoas da comunidade, vítimas da Covid-19, sejam homenageadas com um memorial quando a Nova Barra de Santana for inaugurada. Além da missa, houve jantar de confraternização dos moradores, Papai-Noel e distribuição de lancheiras e algodão doce para as crianças da comunidade.