Ao som de um lamento, ao ritmo grave e cadenciado do atabaque, três membros da Comissão Pastoral da Terra (CPT) cantaram: “Chega Mãe Bernadete, chega Edvaldo, chega Fernando, chega por aqui, eu mandei tocar chamada, foi para resistir”. Esse momento marcou o início do lançamento do Caderno Conflitos no Campo 2023, realizado na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em Brasília–DF, em 22 de abril de 2024.
Maria Bernadete Pacífico foi tragicamente assassinada em agosto de 2023 com 12 tiros no quilombo Pitanga dos Palmares, na região Metropolitana de Salvador. Por defender a mesma causa, o direito ao território, Edvaldo Pereira Rocha, líder do quilombo Jacarezinho (MA), foi assassinado em abril de 2022 com seis tiros.
Em outra situação, mas no mesmo contexto, Fernando Araújo dos Santos, um trabalhador rural sem-terra e sobrevivente do Massacre de Pau D’Arco no Pará, foi morto a tiros em janeiro de 2021. Mãe Bernadete, Edvaldo e Fernando não são exceções isoladas; no Brasil, há pessoas sendo mortas ao tentar proteger seus territórios e o meio ambiente de forças predatórias.
Sinais de esperança
O bispo auxiliar de Brasília (DF) e secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Ricardo Hoepers, deu as boas-vindas aos participantes e enfatizou que as dores, sofrimentos e mortes mencionadas no relatório representam as dores de Jesus Cristo. Ele destacou que a presença das pessoas que representam os agentes da CPT de todo o Brasil são sinais de esperança e ressurreição de Cristo. Em nome dos bispos do Brasil, dom Ricardo expressou sua gratidão pelo trabalho realizado pela CPT.
O administrador da prelazia de Itacoatiara (AM) e presidente da CPT, dom José Ionilton Lisboa de Oliveira, SDV, enfatizou a importância da publicação do caderno para expor as violações de forma transparente. “O objetivo deste caderno é manter-se fiel ao Deus dos pobres e à terra que pertence a eles”, disse.
Ele ressaltou que publicação possui uma base teológica, lembrando que Deus escuta o clamor dos pobres. Dom Ionilton destacou também a dimensão ética do material, pois a luta pela terra é uma questão de justiça que requer uma ordem social equitativa. Salientou a necessidade de uma sociedade organizada para combater a violência no campo e salvar vidas. Além disso, mencionou a importância política do caderno, auxiliando as lideranças a serem protagonistas de suas histórias com base em dados seguros e recordou que a CPT tem como missão ser parceira, não substituta, dos trabalhadores em suas lutas.
Outra dimensão do caderno, segundo o bispo, é a pedagógica porque promove transformações necessárias e históricas, mantendo vivas as lutas passadas e inspirando as futuras gerações. Por fim, destacou que o conteúdo possui embasamento científico, passando por processos rigorosos de levantamento e consolidação de dados antes da publicação, incluindo averiguações, confirmações e análises.
Dos conflitos no Brasil
Dos 2.203 conflitos no campo registrados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) em 2023, no relatório Conflitos no Campo Brasil, a maior parte é relacionada aos conflitos por terra (78,2%), representando 1.724 ocorrências. Em relação ao ano de 2022, houve um aumento de 7,6% no número de ocorrências nesse eixo, em que 187.307 famílias tiveram suas vidas impactadas pelas violências desse tipo de conflito.
Os números revelam uma intensificação da violência contra os povos da terra, das águas e das florestas, que vivem sob a mira dos conflitos no campo no Brasil. Do total de conflitos por terra em 2023, 92,1% é referente às Violências contra a Ocupação e a Posse e/ou contra a Pessoa (1.588), representando um aumento de 4,3% nos registros de violência nesse eixo em relação ao ano anterior.
Subvertendo tamanha violência, os povos e comunidades do campo somam ações coletivas de resistências. As novas Ocupações/Retomadas (119) e os novos Acampamentos (17) superaram em 60,8% e 240%, respectivamente, os números de 2022. As ações de Retomada foram protagonizadas por indígenas (22) e quilombolas (3), já as Ocupações (94) foram realizadas pelas demais identidades sociais camponesas. Os sem terra e posseiros foram responsáveis por todos os novos Acampamentos em 2023, que representam um aumento expressivo em relação ao ano anterior, mas ainda demonstram números tímidos em relação aos dados alarmantes de violências contra as comunidades, que cresceram intensamente neste mesmo período.
Em 2023, a discrepância entre os números de violência e ações de resistências nos conflitos por terra continuou na tendência de crescimento iniciada em 2016. Este ano, os registros apontam 92,1% correspondente às violências, enquanto as ações de resistências representam apenas 7,9% das ocorrências. As análises presentes no relatório apontam que esse quadro é resultado da escalada da extrema direita, com a reconfiguração das forças políticas e econômicas após o Golpe/Impeachment, somada ao trágico e criminoso governo Bolsonaro, que promoveu uma verdadeira política de ódio contra os povos e comunidades do campo, das águas e das florestas, os tornando ainda mais vulnerabilizados, como expresso nos dados dos últimos anos.
Este contexto sociopolítico não apenas permitiu, como preparou o terreno para que o agronegócio avançasse inescrupulosamente contra as comunidades do campo, que enfrentam cotidianamente invasões de suas terras e territórios, pistolagem, incêndios criminosos, contaminação por agrotóxicos, grilagem e desmatamento, entre tantos impactos sofridos pelos povos em defesa de seus modos de vida, dos direitos humanos e da natureza. Agrupando as categorias de agentes causadores de violências identificados como fazendeiros, grileiros e grandes arrendatários, em 2023, foram registradas ocorrências de pistolagem (165), invasão (181), grilagem (86), desmatamento ilegal (67), incêndios (34) e contaminação por agrotóxicos (21) como algumas das violências promovidas por eles no Eixo Terra.
Geografia dos conflitos por terra
Dos estados em que mais se registraram conflitos por terra, destacam-se a Bahia (202 ocorrências), seguida do Pará (183), Maranhão (171), Rondônia (162) e Goiás (140). Do recorte por região, a que apresenta maiores números de conflitos por terra é a região Norte (700 ocorrências), que acumula 40,6% do total, seguida da Nordeste (530), representando 30,7%. A região Centro-Oeste registrou 300 ocorrências (17,4%), a Sudeste obteve 106 registros (6,1%), e a região Sul, com 88 (5,1%).
Principais causadores das violências
Em 2023, o principal agente causador das violências no Eixo Terra foi o Fazendeiro, responsável por 31,17% das violências, seguido da categoria Empresário, com 19,71%, o Governo Federal, com 11,02%, Grileiro, com 9,06% e o Governo Estadual, com 8,31%. Houve uma diminuição nos números de violências causadas pelo Governo Federal, passando de 240, em 2022, para 175 ocorrências, em 2023, uma diminuição de 27,1%.
Nesse, o tipo de Violência contra a Ocupação e a Posse denominada Omissão/Conivência cujo o Governo Federal foi o agente causador diminuiu de 214 ocorrências, em 2022, para 165, em 2023 (-22,9%). Algumas mudanças de atuação do novo governo podem justificar a diminuição desses números, com a abertura de canais de diálogos com movimentos e organizações de luta no campo, como a criação do Ministério dos Povos Indígenas e do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA).
Já em relação aos Governos Estaduais, os dados revelam um aumento de 109,5% no número de violências causadas, passando de 63 ocorrências, em 2022, para 132, em 2023. Foram 13 tipos de violência protagonizados por este agente causador, com destaque para Omissão/Conivência (58 ocorrências) e as ações policiais de intimidação armada e ameaças variadas (103 ocorrências). Em 2023, os estados de Goiás e Bahia estiveram à frente neste recorte de categoria que causou a ação.
Indígenas e posseiros são as principais vítimas
É sempre válido enfatizar que os dados não são apenas números, é preciso humanizá-los. Os registros da CPT evidenciam a intensidade e os tipos de violência a que estão submetidos os povos do campo, das águas e das florestas. Por trás dos números dos conflitos está o martírio de famílias, povos e comunidades que vivem uma rotina de ataques contra suas vidas e suas terras e territórios. Povos que sofrem com ameaças, expulsão, destruição de suas casas, pertences e roçados, despejos e outras diversas violências já mencionadas.
Como no ano anterior, os Indígenas continuam a ser a categoria que mais sofreu violência no Eixo Terra, com 29,6% do total de violências registradas. Desde 2019, os povos originários aparecem nos registros da CPT como a categoria que mais vem sofrendo violências nesse eixo. Em 2023, não foi diferente: com um crescimento de 10,8% em relação a 2022, os indígenas foram as vítimas em 470 ocorrências de violências por terra.
Em número de ocorrências, seguem os Posseiros (18,7%), os Sem Terra (17,5%), os Quilombolas (15,1%), e os Assentados (6,7%). O relatório destaca um aumento de 61,6% das violências sofridas pelos sem terra, passando de 172 ocorrências em 2022, para 278 em 2023. Esse aumento pode ser decorrente do crescimento do número de novas ocupações e acampamentos, uma vez que nos territórios em que houve estas ações de resistências foram registradas, em 2023, 96 ocorrências de Violência contra a Ocupação e a Posse, 34,5% do total das violências sofridas pelos sem terra.
A rotina de ataques contra povos e comunidades
Os dados levantados pelo Centro de Documentação Dom Tomás Balduino (Cedoc-CPT) permitem aprofundar nos tipos de violência sofridas pelas comunidades no contexto da luta pela terra. Como nos últimos dez anos, Invasão é o tipo de Violência contra a Ocupação e a Posse com o maior número de registros em 2023. Foram 359 ocorrências de invasões no ano, que afetaram 74.858 famílias.
O ano de 2023 também foi o que mais se registrou ocorrências de Expulsão no último decênio e o segundo em que mais se registrou famílias expulsas dos territórios. Foram 37 ocorrências, que envolveram 2.163 famílias. Destaca-se que, dessas 37 ocorrências, 59,4%, contaram com algum tipo de apoio das forças policiais, evidenciando a respaldo dessas forças no processo de retirada das famílias das áreas, sem que houvesse a mediação do Poder Judiciário.
Outro tipo de violência que se destacou foi em relação às ocorrências de Despejo Judicial, com aumento de 194,1%, passando de 17, em 2022, para 50 em 2023. O crescimento sucede um período de diminuição dos casos, devido a suspensão dos despejos coletivos, proposto na Arguição de Descumprimento de Poder Fundamental (ADPF) 828, entre meados de 2020 e final de 2022, com o intuito de evitar os impactos maiores da pandemia junto às populações vulneráveis. Passado esse período, percebe-se que a atuação de fazendeiros e empresários do campo segue respaldada pelo Poder Judiciário, voltando fortalecida em 2023.
Em relação às ocorrências de Grilagem, em 2023 foram registrados 152 casos, envolvendo 29.797 pessoas. Desses, 25% ocorreram em territórios indígenas (38 ocorrências), e 26,3% ocorreram em terras de famílias posseiras. Os casos de Pistolagem registraram um aumento de 45%, com 264 ocorrências. Dessas, 113 contaram com algum apoio das forças policiais. Os sem terra foram os principais alvos das ações de Pistolagem, representando 130 ocorrências, seguidos pelos posseiros (49), indígenas (47) e quilombolas (19). Os números de Desmatamento Ilegal e Incêndios caíram em 2023, com redução de 33,3% e 38,6%, respectivamente. Foram registradas 27 ocorrências de contaminação por agrotóxicos no Eixo Terra, com 2.068 famílias atingidas no ano.
Conflitos pela Água representam 10,21% dos conflitos
Nos últimos anos, verifica-se uma queda nas ocorrências de Conflitos pela Água, após um pico de registro em 2019, o que demonstra os impactos dos crimes de Mariana, Brumadinho e do vazamento de petróleo de um navio cargueiro no litoral brasileiro naquele ano. Em 2023, as ocorrências de conflitos no Eixo Água chegaram a 225, número 1,32% menor que os 228 registrados em 2022.
A região Nordeste concentra o maior número de Conflitos pela Água, com 71 ocorrências. Entre os estados com mais registros, estão o Paraná (44), a Bahia (34), o Maranhão (22) e o Pará (22). Dentre os causadores das violências contra as comunidades nesse eixo, o Fazendeiro ficou em primeiro lugar, com 27,56%, seguido por Empresário nacional e internacional, com 21,33%, do Governo Estadual, com 19,56%, e Mineradora nacional e internacional, com 10,22%. As cinco categorias de identidades sociais que mais sofreram com ações violentas foram os Indígenas (24,44%), Pescadores (21,78%), Ribeirinhos (13,33%), Quilombolas (12,44%) e Assentados (8,44%).
A principal Situação de Conflito pela Água registrada em 2023 foi o Não Cumprimento de Procedimentos Legais (78 ocorrências), decorrente da violação de direitos das comunidades, que são atacados por inúmeras formas de projetos de empreendimentos que têm a água como objetivo central de atuação. Em seguida, as situações de Destruição e/ou Poluição (56), sendo a maioria decorrente do Uso e Preservação (46 ocorrências).
Os registros de Diminuição de Acesso à Água somaram 37 ocorrências em 2023, que representam as várias dificuldades criadas às comunidades para acessarem os corpos d’água. A Contaminação por Agrotóxico resultou em 26 ocorrências de conflitos pela água, um aumento de 52,9% em relação aos números de 2022. Os conflitos pela água são permeados por denúncias por parte de povos, comunidades e organizações sociais aos projetos de empreendimentos predatórios, uma vez que atuam por meio da apropriação, contaminação, privatização e mercantilização desse bem comum.
Fonte: CNBB