Francisco conversa com o psicólogo Salvo Noé para o livro “Medo como dom” (São Paulo), que será lançado em 25 de janeiro. O Pontífice conta seus pensamentos, medos e sensações durante estes anos de pontificado, a partir de sua eleição no Conclave. Depois reflete sobre temas como a acolhida de migrantes e pessoas homossexuais, o carreirismo, a formação nos seminários e a prevenção de abusos. Enfim revela: “eu também tenho às vezes medo de cometer erros, mas o medo excessivo não é cristão”.
“Às vezes sim, quando tenho que tomar uma decisão, digo para mim mesmo: ‘e se eu fizer isso assim…? É um pouco de medo de cometer um erro, não é? E o medo neste caso me ajuda, porque me leva a pesar bem as decisões a serem tomadas, como fazê-lo e tudo mais. Não é o medo que me aniquila, não…. É um sentimento que me deixa alerta: o medo é como uma mãe que adverte”.
Novas facetas da humanidade do Papa, que o mundo aprendeu amplamente a conhecer nestes quase dez anos de seu pontificado, emergem na longa entrevista de Francisco a Salvo Noé, psicólogo e psicoterapeuta, para o livro “O medo como dom” (Edições São Paulo).
Conversa serena
Noé encontrou o Pontífice na Casa Santa Marta, onde Francisco reside e onde, do lado de fora da porta de seu apartamento, está pendurado um letreiro com as palavras Proibido lamentar-se, título de um precedente livro best-seller do mesmo psicólogo. “Em um dos muitos encontros”, relata o autor, apresentando a entrevista, “expressei ao Santo Padre o desejo de escrever um livro sobre medos, perguntando-lhe se ele gostaria de me dar sua contribuição. Como sempre, a resposta foi positiva e assim, em uma tarde de janeiro, armado com um gravador, fiz algumas perguntas às quais o Pontífice respondeu com sua voz calma e tranquila de sempre. Ele também me fez algumas perguntas sobre o medo e assim nosso diálogo se tornou um encontro de muitos pontos de reflexão”.
O diálogo com o Papa, que abre o livro, quer será publicado no dia 25 de janeiro, sonda os pensamentos, sensações e emoções do homem que desde o dia 13 de março de 2013 é o guia da Igreja universal (começando com o medo inicial que depois se tornou ‘tranquilidade’ no dia do Conclave) e analisa temas de estreita relevância eclesiástica, como a formação nos seminários, as ‘perversões’ da hipocrisia, da mundanidade, do carreirismo, o acolhimento de pessoas homossexuais e migrantes, a prevenção do abuso do clero, introduzindo, talvez, caminhos psicológicos nos seminários.
Abusos, psicologia e seminários
Precisamente sobre este último ponto, Francisco reitera – como já fez em outras ocasiões – que “ao iniciar um processo vocacional, é necessário avaliar de forma integral o modo de vida, o aspecto psicológico, as relações interpessoais da pessoa que deseja embarcar no caminho entrando no seminário”. “É melhor perder uma vocação do que arriscar com um candidato inseguro”, afirma. Para o Papa, a proposta de introduzir a psicologia nos seminários é “muito útil”: “tudo o que aconteceu, os abusos sexuais de menores por parte do clero, destacou dramaticamente este problema… É necessário notar antes da ordenação sacerdotal se há inclinações para abusos. Isto pode ser feito por um profissional como você, que também estudou para isto. Se não forem reconhecidos, estes problemas podem ter efeitos devastadores”.
“O seminário não é um refúgio para tantas limitações que possamos ter, nem é um refúgio para falhas psicológicas”, afirma ainda o Papa Francisco. “O caminho deve levar a formar sacerdotes e consagrados maduros, especialistas em humanidade e proximidade, e não funcionários do sagrado”. As pessoas precisam encontrar testemunhas da fé com as quais possam se confrontar e receber apoio e proximidade boa, humana”.
A pessoas homossexuais
A conversa também se detém no tema das pessoas homossexuais: “Deus é Pai e não renega nenhum de seus filhos”, diz o Papa. “E o estilo de Deus é proximidade, misericórdia e ternura”. Não julgamento e marginalização. Deus se aproxima com amor de todos e de cada um de seus filhos. Seu coração está aberto a todos e a cada um. Ele é Pai. O amor não divide, mas une”.
Migrantes usados para causar medo
Sobre o tema da acolhida, o Papa também lembra a questão que lhe é cara dos migrantes que frequentemente – diz – são usados como um expediente “para causar medo nas pessoas, para fazê-las acreditar que nossos problemas surgem a partir disso”. Em vez disso, nossos problemas “surgem da falta de valores elevados, da forma desorganizada de viver em nossas casas e em nossas cidades, do vazio de fé que nos afasta uns dos outros e não nos permite a fraternidade”.
Um estilo respeitoso do meio-ambiente
Na mesma linha, o Papa Francisco reitera seu chamado a “adotar um estilo de vida respeitoso do meio-ambiente para salvaguardar o patrimônio da criação e proteger a vida daqueles que habitam o planeta”. “Nossa terra está doente”, denuncia, “é maltratada e saqueada” e é a consequência de “um modo de vida dominado pelo egoísmo e uma cultura do desperdício, e nos colocou diante de uma alternativa: continuar no caminho percorrido até agora ou embarcar em um novo caminho”. O que é necessário é uma “conversão ecológica”, uma “mudança de rumo”, enfatiza Francisco, “o homem deve assumir a responsabilidade de um compromisso de cuidar da Casa comum”.
Medo excessivo, um comportamento anticristão
Francisco e Noé refletem longamente sobre o conceito de medo, tema central do livro. “O medo excessivo é um comportamento que nos machuca, nos enfraquece, nos encolhe, nos paralisa. Tanto que uma pessoa escravizada pelo medo não se move, não sabe o que fazer: tem medo, concentra-se sobre si mesma, esperando que algo ruim aconteça. Portanto, o medo leva a um comportamento que paralisa”, observa o Papa. “O medo excessivo, de fato, não é um comportamento cristão, mas é uma atitude, podemos dizer, de uma alma aprisionada, sem liberdade, que não tem liberdade para olhar para frente, para criar algo, para fazer o bem”.
A hipocrisia na Igreja é detestável
A hipocrisia também não é cristã, acrescenta o Papa. “É o medo da verdade”, explica, e a Igreja não está isenta dela. “O hipócrita teme a verdade. Preferimos fingir, a ser nós mesmos. É como jogar fora a alma. A prepotência aniquila a coragem de dizer a verdade abertamente e assim se esquiva facilmente da obrigação de dizê-la sempre, em todos os lugares e apesar de tudo”. “Há muitas situações em que isto acontece: se esconde no local de trabalho, onde se tenta parecer amigável com os colegas enquanto a competição leva a atacá-los por trás; na política não é raro encontrar hipócritas que vivem uma divisão entre o público e o privado”. Entretanto, o Papa enfatizou, “a hipocrisia na Igreja é particularmente detestável”. Infelizmente ela existe e há muitos cristãos e ministros hipócritas. Nunca devemos esquecer as palavras do Senhor: “Que seu discurso seja sim, sim, não, não”. O mais vem do maligno”.
A eleição no Conclave
Das reflexões passamos às recordações e a memória volta ao dia da eleição, àquela maneira “acolhedora e simples” do Papa se apresentar ao mundo, como diz Noé, que “conquistou o coração de tantos”. “Eu não esperava ser eleito, mas nunca perdi minha paz. Eu tinha trazido uma pequena mala, convencido de que voltaria a Buenos Aires, para o Domingo de Ramos. Eu havia deixado as homilias preparadas ali. Em vez disso, fiquei em Roma”, explica Jorge Mario Bergoglio. Ele se lembra do cardeal Claudio Hummes, sua recomendação de não se esquecer dos pobres, e também a reafirmação: “Não se preocupe, é assim que o Espírito Santo faz”, diante da expressão surpresa do Papa recém-eleito. “Senti paz e tranquilidade, mesmo nas escolhas decisivas, por exemplo, eu não queria usar nada, apenas o vestido branco. Também os sapatos eu não quis colocar. Eu já tinha os sapatos e só queria ser normal. Depois saí e disse boa noite“.
Andar pela rua
O Papa Francisco mais uma vez confessa sua saudade de poder vaguear pelas ruas como na Argentina, encontrar as pessoas, conversar com elas e compartilhar histórias, dificuldades e humores: “eu tenho que me ater aos protocolos de segurança. Aqui eles têm medo de que algo possa acontecer comigo”. É outro medo, neste caso, porém, justificado. “As primeiras vezes, assim que fui eleito, tentei sair sem avisar e criei sérios problemas para as pessoas que trabalham para garantir minha segurança”, revela o Papa.
A escolha de morar em Santa Marta
Sobre a escolha de morar em Santa Marta, onde o Pontífice se alimenta em uma sala de jantar comunitária e divide a mesa com outras pessoas, Noé pergunta se esta decisão foi influenciada por algum tipo de medo. Sim’, responde o Papa Francisco, ‘escolhi viver na Casa Santa Marta, em vez de no histórico apartamento papal no Palácio Apostólico, porque, como você pode entender, preciso conhecer pessoas, conversar, e aqui me sinto mais livre’. Lá me sentia blindado e isso me assustava. Cada um de nós tem que se conhecer para encontrar as melhores soluções para nosso desconforto. Quando me levaram para o Palácio Apostólico, assim que fui eleito, vi um quarto muito grande, um grande banheiro e um efeito funil. Salas grandes, mas uma entrada pequena, onde apenas muito poucos funcionários podem entrar. Então pensei: paciência se eu não posso sair para passear fora do Vaticano, mas pelo menos quero ver pessoas. Foi por isso que escolhi a Casa Santa Marta. Eu queria quebrar este hábito do Papa isolado. Aqui pego meu café na máquina, como na cantina com os outros, rezo missa todos os dias e brinco com os guardas suíços. No meu desembarque há sempre um Guarda Suíça. Um dia eu lhe ofereci um lanche, ele não o quis aceitar, dizendo-me que não tinha ordens do comandante. Eu respondi: ‘Sou eu o comandante'”.
A proximidade é o verdadeiro antídoto para o medo
Por outro lado, “a proximidade com as pessoas, a capacidade de se confrontar, de fazer coisas juntos é o verdadeiro antídoto para o medo”, evidencia o Papa Francisco. “Muitas vezes, o isolamento, o sentir-se errado, ter problemas e não encontrar ajuda, pode levar a crises que se transformam em angústia mental. Meu trabalho está repleto de pessoas que se sentem solitárias e terrivelmente longe de “casa”. A solidão é o verdadeiro mal da nossa sociedade. Todos conectados com os telefones celulares, mas desconectados da realidade”.
Mundanidade, perversão na Igreja
Enfim, Francisco reafirma sobre o futuro: “Jesus está sempre ao nosso lado”. Ele incita os fiéis a “viverem com amor, a saber como confiar-se ao Pai”. E lança mais uma vez um apelo a todos os sacerdotes para que demonstrem “misericórdia, coragem e portas abertas”. “Hoje”, diz, “a maior perversão na Igreja é a de sacerdotes carreiristas e a mundanidade”. A mundanidade que leva à vaidade, arrogância, orgulho. A mundanidade mata, como disse certa vez, um sacerdote mundano é um pagão clericalizado. Os fiéis precisam ver que somos como eles, que temos os mesmos medos e o mesmo desejo de viver na graça de Deus. Aproximar crentes e não-crentes e falar com o coração aberto. Todos nós devemos fazer isso”.
Fonte: Vatican News